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“A tradição é um axolote” – Carminho apresenta “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”

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Escute: https://SMB.lnk.to/CarminhoEVMR

Como a criatura da história de Julio Cortázar. Observada. Presa no aquário, mantendo as brânquias de salamandra jovem, suspensa em seu tanque — um eterno alienígena, uma fascinação. Observada de perto. Observada de longe, também, no começo. Observada continuamente. De forma quase obcecada. Ao olhá-la nos olhos, em algum momento se vislumbra algo em comum — talvez a humanidade do monstro, ou, mais provavelmente, o axolote dentro de nós mesmos. E então, num instante, quem está no tanque somos nós, olhando para o observador do lado de fora. Para aquele que costumávamos ser, agora que, completamente absorvidos pelo alienígena, só podemos confiar em nossa observação desse outro — aquele que nos dá orientação, escala, proporções, um ponto de referência.

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Com o tempo, até isso se dissipa. E a partir daí, não há mais distâncias. O tanque inundou a sala, tudo virou aquário — não existe dentro e fora. Desenvolvemos brânquias.

O mesmo acontece com a tradição musical. Começamos do lado de fora. É verdade, talvez já se nasça com um pouco de axolote — uma partícula de DNA, uma mãe que canta as músicas de seu povo, uma vocação anfíbia, uma inclinação natural para o fado. Estudamos. Murmuramos suas melodias. Ela nunca perde sua estranheza. Mas quanto mais tempo passamos com ela, mais aprendemos a amá-la profundamente — seja como participante, seja como ouvinte. Nada a neutraliza; sua estranheza é justamente o que nos cativa. Ela nunca se torna algo “normal”. Está sempre cheia de surpresas, de espanto. O fraseado, seus ângulos e curvas, suas harmonias e timbres, seus ritmos vacilantes e suas ondulações majestosas. Sempre estranha. De uma beleza diferente.

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E eis que, em vez de domesticarmos a música tradicional, é ela que nos transforma: somos absorvidos por ela. O estranho se torna familiar porque nós nos tornamos o estranho — agora imersos na própria tradição.

Aqui não existe “fusão”. Nem “sincretismo”. É uma nova identidade.Algo que se manifesta. Uma mutação cromossômica, uma renovação, uma transfiguração.
Uma distinção que se desfaz. Uma metamorfose completa.

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A voz de Carminho dissolve definições. É contemporânea e é tradicional — e, nela, o tradicional nunca deixou de ser contemporâneo. Ao ouvi-la cantar, essas fronteiras se tornam irrelevantes; somos tomados por uma emoção tão profunda que o tempo parece suspenso — ou melhor, o tempo continua, o tempo não para. E as paredes que separam a música em categorias se revelam tão frágeis que perdem completamente o sentido.

Eis Carminho no estúdio, masterizando com Bob Weston. Lado a lado com alguns dos músicos de rock mais intensos e ruidosos de Chicago. Do mundo. Do mundo. Há um ponto em comum, mas não estritamente estético. Não há ecos forçados de Shellac. A música preserva sua integridade. O encontro revela uma sensibilidade compartilhada, uma ligação espiritual — a continuidade de uma conexão anterior com o parceiro de banda de Weston, Steve Albini. Uma presença vivida entre pessoas reais.

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Nada há que não se saboreie nestas canções de sensibilidade dilacerante, com letras tão frágeis quanto as cordas que as fazem vibrar. Ricas em dinâmica e cor, sua execução é uma forma particular de poesia.

Junto de Carminho, a guitarra portuguesa de André Dias atua como uma segunda voz, movendo-se polifonicamente com a guitarra acústica de Flávio César Cardoso, o baixo acústico de Tiago Maia e a guitarra elétrica de Pedro Geraldes — seu rubato oscilando e fluindo como um organismo das profundezas do oceano, com os tentáculos ondulantes de uma anêmona.

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As canções de Carminho arrepiam a pele; seu canto desperta os recantos mais íntimos do ouvido. Os arranjos são, ao mesmo tempo, agora e depois, nós e eles, eu e você. Não é preciso ser português para se tornar português.

Carminho pensa sua versão do fado em termos de cinema. “Você vê uma casa. Depois, a cozinha. Uma mulher em close. É sobre perspectiva, camadas; sobre perceber a profundidade de campo. Tudo isso para criar uma noção das identidades que absorvo, das influências que capto na voz — tudo, aqui, trabalha comigo. Pequenos fantasmas. Todas as suas influências cantando a solidão e o amor, então, nunca se canta sozinha”.

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Nunca sozinha. Sempre acompanhada — ou assombrada, no melhor sentido — pelos seus predecessores, pelos seus antepassados. Carminho foi fado desde o ventre: embalada pelo canto de fado da mãe, que fazia vibrar o líquido amniótico. Foi um bebê do fado, uma criança do fado, uma adolescente e uma jovem adulta do fado. Ia da casa do fado para o quintal do fado. Todo o seu universo é o fado. Mas o fado, agora, é também outras coisas; ganhou novas camadas, uma perspectiva diferente.

Na visão de Carminho, o fado abriga seus pequenos fantasmas. Por exemplo, a voz espectral do Ondes Martenot, um dos primeiros instrumentos eletrônicos. “Uma única nota”, ela diz, “como uma faca cortando em pedaços.” Ou o Cristal Baschet, “que dá a sensação de uma ilusão ótica e sonora: você não sabe se está ouvindo metais ou uma orquestra; ouve um drone grave, de baixa frequência, e não sabe se é um sintetizador — mas é totalmente orgânico, são tubos de vidro friccionados que ressoam através de grandes placas metálicas”.

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O conceito não é uma fusão entre o fado e a música experimental, mas sim abrir um ao outro. Sentir as emoções dessa outra música, dessa outra tradição sonora, e vivenciá-las dentro do campo emocional do fado. “Não se trata de mudar o fado”, insiste Carminho. “É trabalhar sobre ele, como uma artesã, com as mãos”.

Um exemplo disso é o uso do Mellotron, tocado e programado por João Pimenta Gomes. As fitas magnéticas usadas no instrumento são todas com a voz da própria Carminho, afinadas em diferentes notas — assim, na gravação, ela reage a si mesma. “Não sou eu”, comenta. “É outra eu”.

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Especialmente marcante é o fantasma que aparece na canção *‘Saber’*: Laurie Anderson — uma cantora que, desde os anos 1970, explora a alteridade na voz, pioneira em expressar o encontro entre emoção e tecnologia. “At last being is knowing / To learn one another” (“Por fim, ser é conhecer / aprender um ao outro”), cantam Anderson e Carminho, em contraponto, sobrepondo o português do fado e sua sombra em inglês norte-americano. “By learning our hidden barriers” (“Aprendendo nossas barreiras ocultas”).

O nível da água subiu. As barreiras caíram. Fundimo-nos com o estrangeiro e agora flutuamos no grande reservatório onde nadam todos os axolotes encantados.

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Nota cedida por: Perfexx Assessoria
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Foto: John Corbett

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** A opinião expressa neste texto não é necessariamente a mesma deste site de notícias.

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